Problemas da Literatura Infantil, Cecília Meireles
Veio através de troca no skoob. Editora Nova Fronteira, 1984, 155 páginas. É um livro de uma amante de livros infantis para os outros entusiastas. Trata o livro, a literatura e as crianças com carinho e reverência à sua importância. Achei perfeito para conhecer o assunto, tanto como mãe e apaixonada pelos livros quanto para a academia.
A ideia que permeia todo o livro é que literatura infantil não deixa de ser Literatura por ser escrita para crianças ou ter sido apropriada por elas. Um livro, para a criança, vai suprir a mesma necessidade que supre em um adulto: fascinar, entreter, apreender, refletir. Mas olha só, vocês que já eram ratinhos de biblioteca quando crianças, como eu, se a dona Cecília não era sabida:
" Se considerarmos que muitas crianças, ainda hoje, têm na infância o melhor tempo disponível da sua vida, que talvez nunca mais possam ter a liberdade de uma leitura desinteressada, compreenderemos a importância de bem aproveitar essa oportunidade." pg. 123
A primeira edição é de 1951 e, naquela época, as histórias em quadrinhos e ilustradas eram consideradas uma "distração" para a "real leitura". É minha única discordância, e não culpo a Cecília, já que os quadrinhos e os livros ilustrados de hoje são bem diferentes daqueles que ela podia analisar. Ainda bem!
Os trechos mais interessantes:
1. Oralidade e literatura
"Sempre que uma atividade intelectual se manifesta por intermédio da palavra, cai, desde logo, no domínio da Literatura. A Literatura, porém, não abrange, apenas, o que se encontra escrito (...) A palavra pode ser apenas pronunciada. É o fato de usá-la, como forma de expressão, independente da escrita, o que designa o fenômeno literário." pg. 19
"Conta-se e ouve-se para satisfazer essa íntima sede de conhecimento e instrução que é própria da natureza humana. Enquanto se vai contando, passam os tempos do inverno, passam as doenças e as catástrofes - como nos contos do Decameron - chegam as imagens do sonho - como quando as crianças docemente descaem adormecidas.
O gosto de contar é idêntico ao de escrever - e os primeiros narradores são os antepassados anônimos de todos os escritores. O gosto de ouvir é como o gosto de ler. Assim, as bibliotecas, antes de serem estas infinitas estantes, com vocês presas dentro dos livros, foram vivas e humanas, rumorosas, com gestos, canções, danças entremeada às narrativas." pg 49.
"Por isso, quando ainda não havia bibliotecas infantis, não era tão grande e sensível a sua falta; o convívio humano as substituía. Tempos em que a família, aconchegada, criava um ambiente favorável à formação da criança." pg 50.
"é a Literatura Tradicional a primeira a instalar-se na memória da criança. Ela representa o seu primeiro livro, antes mesmo da alfabetização, e o único, nos grupos sociais carecidos de letras.
"Por esse caminho, recebe a infância a visão do mundo sentido, antes de explicado; do mundo ainda em estado mágico. Ainda mal acordada para a realidade da vida, é por essa ponte de sonho que a criança caminha, tonta do nascimento, na paisagem do seu próprio mistério. Essa pedagogia secular explica-lhe, de forma poética, fluida, com as incertezas tão sugestivas do empirismo, o ambiente que a rodeia - seus habitantes, seu comportamento, sua auréola." pg. 83
2. A importância da literatura
"A Literatura não é, como tantos supõem, um passatempo. É uma nutrição." pg 32
"...para a criança, como para o adulto, a eternidade é um sonho inconfessado mas vigilante, se não em termos divinos, pelo menos em humanos: reconhecer a continuidade do nosso destino na terra; sentir perpetuada este interminável família humana, aconchego semelhante ao da enumeração bíblica, em que nos encontramos idênticos, desde sempre, para sempre, em nossas fraquezas e virtudes." pg. 35
"O certo, porém, é que os livros que têm resistido ao tempo, seja na Literatura Infantil, seja na Literatura Geral são os que possuem uma essência de verdade capaz de satisfazer à inquietação humana, por mais que os séculos passem. São também os que possuem qualidades de estilo irresistíveis cativando o leitor da primeira à última página, ainda quando nada lhe transmitam de urgente ou essencial."
"De qualquer forma, o milagre fundamental está nas mãos do autor" pg. 117
"porque precisamos pensar e exprimir o pensamento. Porque precisamos ser lúcidos e exatos. O mundo sofre por uma imperfeita comunicabilidade dos homens. Não dizemos o que pensamos? Ou não pensamos o que dizemos?" pg. 154
3. O conceito de literatura infantil
"...tudo é uma Literatura só. A dificuldade está em delimitar o que se considera como especialmente do âmbito infantil.
São as crianças, na verdade, que o delimitam, com a sua preferência. Costuma-se classificar como Literatura Infantil o que para elas se escreve. Seria mais acertado, talvez, assim classificar o que elas leem com utilidade e prazer. Não haveria, pois, uma Literatura Infantil a priori, mas a posteriori." pg. 20
"Ah! tu, livro despretensioso, que, na sombra de uma prateleira, uma criança livremente descobriu, pelo qual se encantou, e, sem figuras, sem extravagâncias, esqueceu as horas, os companheiros, a merenda... tu, sim, és um livro infantil, e o teu prestígio será, na verdade, imortal."
"Pois não basta um pouco de atenção dada a uma leitura para revelar uma preferência ou uma aprovação. É preciso que a criança viva a sua influência, fique carregando para sempre, através da vida, essa paisagem, essa música, esse descobrimento, essa comunicação..." pg 31
"Só nesses termos interessa falar de Literatura Infantil. O que a constitui é o acervo de livros que, de século em século e de terra em terra, as crianças têm descoberto, têm preferido, têm incorporado ao seu mundo, familiarizadas com seus heróis, suas aventuras, até seus hábitos e sua linguagem, sua maneira de sonhar e suas glórias e derrotas." pg 32
"Que as crianças gostam de histórias ricas de conteúdo humano, prova-o a escolha que têm feito, através dos tempos, entre livros tão variados. Que são sensíveis à arte literária, a certos requintes de técnica, basta ouvir-se o testemunho de alguns que recordam a infância." pg. 122
4. O livro infantil - autores adultos, leitores crianças
"... em suma, o "livro infantil", se bem que dirigido à criança, é de invenção e intenção do adulto. Transmite os pontos de vista que este considera mais úteis à formação de seus leitores. E transmite-os na linguagem e no estilo que o adulto igualmente crê adequados à compreensão e ao gosto do seu público." pg 29
"Uma das complicações iniciais é saber-se o que há, de criança, no adulto, para poder comunicar-se com a infância, e o que há de adulto, na criança, para poder aceitar o que os adultos lhe oferecem. Saber-se, também, se os adultos sempre têm razão, se, às vezes, não estão servindo a preconceitos, mais que à moral; se não há uma rotina, até na Pedagogia; se a criança não é mais arguta, e sobretudo mais poética do que geralmente se imagina..."
"Por isso, em lugar de se classificar e julgar o livro infantil como habitualmente se faz, pelo critério comum da opinião dos adultos, mais acertado parece submetê-lo ao uso - não estou dizendo à crítica - da criança, que, afinal, sendo a pessoa diretamente interessada por essa leitura, manifestará pela sua preferência, se ela a satisfaz ou não."
"Pode até acontecer que a criança, entre um livro escrito especialmente para ela e outro que o não foi, venha a preferir o segundo. Tudo é misterioso, nesse reino que o homem começa a desconhecer desde que o começa a abandonar." pg 30
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A ideia que permeia todo o livro é que literatura infantil não deixa de ser Literatura por ser escrita para crianças ou ter sido apropriada por elas. Um livro, para a criança, vai suprir a mesma necessidade que supre em um adulto: fascinar, entreter, apreender, refletir. Mas olha só, vocês que já eram ratinhos de biblioteca quando crianças, como eu, se a dona Cecília não era sabida:
" Se considerarmos que muitas crianças, ainda hoje, têm na infância o melhor tempo disponível da sua vida, que talvez nunca mais possam ter a liberdade de uma leitura desinteressada, compreenderemos a importância de bem aproveitar essa oportunidade." pg. 123
Esse é o Logan, que adora livros e não perde a oportunidade! Conheça um pouquinho da história dele no delicioso "A vida com Logan" |
A primeira edição é de 1951 e, naquela época, as histórias em quadrinhos e ilustradas eram consideradas uma "distração" para a "real leitura". É minha única discordância, e não culpo a Cecília, já que os quadrinhos e os livros ilustrados de hoje são bem diferentes daqueles que ela podia analisar. Ainda bem!
Os trechos mais interessantes:
1. Oralidade e literatura
"Sempre que uma atividade intelectual se manifesta por intermédio da palavra, cai, desde logo, no domínio da Literatura. A Literatura, porém, não abrange, apenas, o que se encontra escrito (...) A palavra pode ser apenas pronunciada. É o fato de usá-la, como forma de expressão, independente da escrita, o que designa o fenômeno literário." pg. 19
"Conta-se e ouve-se para satisfazer essa íntima sede de conhecimento e instrução que é própria da natureza humana. Enquanto se vai contando, passam os tempos do inverno, passam as doenças e as catástrofes - como nos contos do Decameron - chegam as imagens do sonho - como quando as crianças docemente descaem adormecidas.
The Storyteller, obra de Howard Terpning, site oficial. |
O gosto de contar é idêntico ao de escrever - e os primeiros narradores são os antepassados anônimos de todos os escritores. O gosto de ouvir é como o gosto de ler. Assim, as bibliotecas, antes de serem estas infinitas estantes, com vocês presas dentro dos livros, foram vivas e humanas, rumorosas, com gestos, canções, danças entremeada às narrativas." pg 49.
"Por isso, quando ainda não havia bibliotecas infantis, não era tão grande e sensível a sua falta; o convívio humano as substituía. Tempos em que a família, aconchegada, criava um ambiente favorável à formação da criança." pg 50.
Xhosa Transkei storytellers, fotografia de Harold Scheub, disponível na Digicol Library |
"é a Literatura Tradicional a primeira a instalar-se na memória da criança. Ela representa o seu primeiro livro, antes mesmo da alfabetização, e o único, nos grupos sociais carecidos de letras.
"Por esse caminho, recebe a infância a visão do mundo sentido, antes de explicado; do mundo ainda em estado mágico. Ainda mal acordada para a realidade da vida, é por essa ponte de sonho que a criança caminha, tonta do nascimento, na paisagem do seu próprio mistério. Essa pedagogia secular explica-lhe, de forma poética, fluida, com as incertezas tão sugestivas do empirismo, o ambiente que a rodeia - seus habitantes, seu comportamento, sua auréola." pg. 83
2. A importância da literatura
"A Literatura não é, como tantos supõem, um passatempo. É uma nutrição." pg 32
"Book eater" por Beppe Giacobbe, no Creative Quarterly |
"...para a criança, como para o adulto, a eternidade é um sonho inconfessado mas vigilante, se não em termos divinos, pelo menos em humanos: reconhecer a continuidade do nosso destino na terra; sentir perpetuada este interminável família humana, aconchego semelhante ao da enumeração bíblica, em que nos encontramos idênticos, desde sempre, para sempre, em nossas fraquezas e virtudes." pg. 35
"O certo, porém, é que os livros que têm resistido ao tempo, seja na Literatura Infantil, seja na Literatura Geral são os que possuem uma essência de verdade capaz de satisfazer à inquietação humana, por mais que os séculos passem. São também os que possuem qualidades de estilo irresistíveis cativando o leitor da primeira à última página, ainda quando nada lhe transmitam de urgente ou essencial."
"De qualquer forma, o milagre fundamental está nas mãos do autor" pg. 117
Retrato da escritora inglesa Fay Sampson, por Diana Colledge |
"porque precisamos pensar e exprimir o pensamento. Porque precisamos ser lúcidos e exatos. O mundo sofre por uma imperfeita comunicabilidade dos homens. Não dizemos o que pensamos? Ou não pensamos o que dizemos?" pg. 154
3. O conceito de literatura infantil
"...tudo é uma Literatura só. A dificuldade está em delimitar o que se considera como especialmente do âmbito infantil.
São as crianças, na verdade, que o delimitam, com a sua preferência. Costuma-se classificar como Literatura Infantil o que para elas se escreve. Seria mais acertado, talvez, assim classificar o que elas leem com utilidade e prazer. Não haveria, pois, uma Literatura Infantil a priori, mas a posteriori." pg. 20
"Ah! tu, livro despretensioso, que, na sombra de uma prateleira, uma criança livremente descobriu, pelo qual se encantou, e, sem figuras, sem extravagâncias, esqueceu as horas, os companheiros, a merenda... tu, sim, és um livro infantil, e o teu prestígio será, na verdade, imortal."
Imortal bruxinha! |
"Pois não basta um pouco de atenção dada a uma leitura para revelar uma preferência ou uma aprovação. É preciso que a criança viva a sua influência, fique carregando para sempre, através da vida, essa paisagem, essa música, esse descobrimento, essa comunicação..." pg 31
"Só nesses termos interessa falar de Literatura Infantil. O que a constitui é o acervo de livros que, de século em século e de terra em terra, as crianças têm descoberto, têm preferido, têm incorporado ao seu mundo, familiarizadas com seus heróis, suas aventuras, até seus hábitos e sua linguagem, sua maneira de sonhar e suas glórias e derrotas." pg 32
A Lisa demorou, mas acabou se rendendo ao bruxinho que já entrou pro cânone infantil! |
"Que as crianças gostam de histórias ricas de conteúdo humano, prova-o a escolha que têm feito, através dos tempos, entre livros tão variados. Que são sensíveis à arte literária, a certos requintes de técnica, basta ouvir-se o testemunho de alguns que recordam a infância." pg. 122
4. O livro infantil - autores adultos, leitores crianças
"... em suma, o "livro infantil", se bem que dirigido à criança, é de invenção e intenção do adulto. Transmite os pontos de vista que este considera mais úteis à formação de seus leitores. E transmite-os na linguagem e no estilo que o adulto igualmente crê adequados à compreensão e ao gosto do seu público." pg 29
"Uma das complicações iniciais é saber-se o que há, de criança, no adulto, para poder comunicar-se com a infância, e o que há de adulto, na criança, para poder aceitar o que os adultos lhe oferecem. Saber-se, também, se os adultos sempre têm razão, se, às vezes, não estão servindo a preconceitos, mais que à moral; se não há uma rotina, até na Pedagogia; se a criança não é mais arguta, e sobretudo mais poética do que geralmente se imagina..."
"Por isso, em lugar de se classificar e julgar o livro infantil como habitualmente se faz, pelo critério comum da opinião dos adultos, mais acertado parece submetê-lo ao uso - não estou dizendo à crítica - da criança, que, afinal, sendo a pessoa diretamente interessada por essa leitura, manifestará pela sua preferência, se ela a satisfaz ou não."
"Pode até acontecer que a criança, entre um livro escrito especialmente para ela e outro que o não foi, venha a preferir o segundo. Tudo é misterioso, nesse reino que o homem começa a desconhecer desde que o começa a abandonar." pg 30
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Dona Cecília sabe, e muito. Gostei especialmente da frase "A Literatura não é, como tantos supõem, um passatempo. É uma nutrição." É meu argumento desde já, rs.
ResponderExcluirE também o último trecho, quem melhor que criança para avaliar" um livro que é direcionado para ela?
Muito interessante este livro, ainda mais por ter sido escrito por quem foi, não é.
E a Bruxinha, bom, ela nem se fala.
amei!
ResponderExcluirÓtimo! Também adorei! Grato pela chance de conhecer um pouco mais Cecília Meireles.
ResponderExcluirMuito bom, faço questão de comentar! Me ajudou muito!
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