Eu era uma groupie juvenil
"Se o mundo é mesmo
Parecido com o que vejo
Prefiro acreditar
No mundo do meu jeito"
Legião Urbana, "Eu era um lobisomem juvenil"
Nasci no final dos anos 70. E tive a sorte cabalística de crescer durante a melhor fase do rock nacional. Na TV tocava Titãs, Paralamas, RPM, Cazuza, Uns e outros. Na rádio, no interior do Paraná, escutávamos além deles e do Legião, os gaúchos, na Atlântida. Nenhum de Nós, Engenheiros do Havaí. Eu ouvia e via aqueles caras cantando tão bonito e tão despretensiosamente, como se estivessem só conversando com a gente, sem aqueles malabarismos vocais exagerados da música sertaneja. O ritmo sempre me fez pular da cadeira e dançar até cair. Até hoje. As letras falavam de uma liberdade que eu queria pegar com a mão. Mesmo que trouxesse alguns machucados, alguma tristeza, alguma solidão. Deixar tudo de lado para seguir o que eu queria era sensato demais.O que eu queria era rock. E como eu não conhecia bandas e cantoras femininas, rock pra mim era feito por meninos e eu os adorava por isso… e por serem bonitos. O mais sem graça da escola poderia, magicamente, parecer um belo pedaço de carne no palco. A mágica que toca a alma groupie é aquela que faz meio quilo de carne moída andando na rua virar filé mignon com um microfone ou baixo na mão. Pelo menos pra mim, o amor pelo rock salivava.
Quando os anos 90 começaram e as duplas sertanejas tomaram o lugar dos meus ídolos, eu fiquei perdida. Em suspensão. Estava morando em Erechim, e todo mundo da escola adorava Zezé di Camargo e Luciano ou então ouvia “poperô”. Eu falava baixinho “eu gosto de rock” e me contentava em gravar as fitas direto do rádio, tentando parar a gravação rapidinho antes que o locutor falasse muita coisa no final da música. E fingia que estava lá, na multidão, gritando e cantando e pulando nos shows que nunca aconteciam no meu cantinho isolado do mundo. Decorei “Faroeste Caboclo”, mas eu preferia mesmo “Astronauta de Mármore”. Só muito tempo mais tarde eu entenderia o porquê e descobriria que não é tão boa assim, mas aí a nostalgia da melhor música da sua infância fala mais alto que a descoberta da má versão.
Ainda bem que encontrei meus iguais novamente, senão não haveria esse texto. Em 1994 entrei no CEFET, uma universidade federal que ofertava ensino médio também e hoje atende pela sigla não-silábica UTFPR. Foi a época mais divertida e bem aproveitada da minha vida, quando eu não tinha preocupações maiores do que passar em física. E a escola ainda ajudava no desvio, pois tínhamos o benefício de poder reprovar em três matérias sem precisar repetir o ano inteiro. Vai vendo. Como eu terminei o curso técnico, foram quatro anos convivendo com alguns dos maiores conhecedores de rock da região inteira. Às fitas que só tinham os nacionais gravados da rádio acrescentei uma miscelânea que incluia The Doors, Ramones, Metallica, Credence, Green Day, Nirvana, Red Rot Chilli Peppers e até Offspring e Body Count.
Gravados de cds, muito mais qualidade. Eu ainda não conhecia as categorias, os gêneros, os grupos, os ativismos. Tudo que passasse perto de rock ou soasse como, valia. Assim como os meninos, claro. Se passassem perto ou soassem como, eram melhores. Nem precisavam tocar nada, afinal, os meninos que tinham banda eram pouquíssimos. A concorrência era forte e eu tinha pouca paciência. É claro que eram os músicos quem eu queria, de preferência o baterista (até conhecer o baixo acústico, claro), mas toda aquela parafernália e todo aquele ego davam um trabalho chato… eu preferia dar uma olhada carinhosa pra plateia e procurar alguém legal e acessível. Mas não era só romance a coisa. Meu negócio com o rock sempre foi muito maior.
Eu queria aqueles meninos porque eles eram o instrumento da música, porque era através deles que ela chegava até mim. Eram eles que me faziam mergulhar. Até hoje, quando tocam a música certa, aquela, eu afundo, me perco, me esqueço. Dizer que é catarse parece tão pouco! É paixão completa, é perdição, é o fim. Tudo o que eles fazem finaliza no meu corpo inteiro. Hoje, precisam fazer muito bem, do jeito certo, no ritmo preciso e em menos de três minutos (não confundam, é de música que eu to falando aqui). Mas quando eu tinha 16 anos, quando a groupie nasceu, era bem mais fácil. Ninguém tinha experiência suficiente para fazer melhor (ainda estamos falando de música). Foram as bandas cover do colégio que me ensinaram o tipo de rock que mais me agrada e o amor por algumas das bandas com as quais eu me identifico até hoje começou ali. Já sobre meninos, eu não sabia muita coisa. A gente nunca sabe.
A música ao vivo é muito melhor que a gravada. É óbvio mas é a premissa de todo esse texto. (Quase) não tem nada melhor do que ouvir a sua música preferida bem executada. Por isso eu valorizo muito bandas cover e as que fazem versões e homenagens. Ramones nunca mais, mas 53rd & 3rd toda sexta! E era esse tipo de banda que minhas amigas e eu seguíamos, íamos nos ensaios pra ver se tinha composição nova, se eles estavam tirando (de ouvido!) alguma coisa diferente… e a gente deixava de ser groupie pra ser amiga. Opina, dá pitaco, incomoda, chateia. Acho que eu nunca fui tão groupie como na época em que via os amigos ensaiando. Era a gente também no show, nós lembrávamos de como tinha surgido uma ideia, um riff, um acorde, um refrão. O que a gente quer, sendo groupie, é fazer parte do rock sem conseguir tocar nada. É participar, pelo menos com a ideia, da criação, não ser apenas audiência. Mesmo que a audiência seja também a alma do rock, não éramos fãs. Éramos groupies. Éramos parte.
Acho que eu vou decepcionar todo mundo porque não vou contar dos romances. Claro que teve. Mas como eu disse, sempre tive pouca paciência. Dá muito trabalho ser groupie adulta, groupie tr00, pra valer. Admiro as mulheres que fizeram história como groupies, tiveram a coragem de libertar o desejo e batalhar pela vontade e o tesão que sentiam. Não era a minha, aquietei. Mas gostar de rock foi um dos meus primeiros passos no feminismo. Porque eu precisei enfrentar opiniões, proibições e preconceitos pra aproveitar o que eu gosto. Pra dançar sozinha, no meio dos meninos “entendidos” que assistiam shows sem dançar. Pra dançar maluca, no meio de meninas e meninos comportados que não sentem a terra tremer como eu. Ou pior, sentem e tem vergonha. Pra gritar louca, doida mesmo, no meio da platéia que só aplaude no final da música.
Quando a gente encontra umas amigas corajosas assim, dá gosto de ser roqueira. Eu tive grandes amigas e grandes noites nessa vida, e espero mais. Eu era uma groupie juvenil e agora sou audiência. Guardei numa caixa de lembranças meus diários, os set lists roubados, as filipetas, os cds autografados… pra reviver um pouquinho, se der saudade. Em três anos, só abri agora, pra tirar essa foto. Também é bom assim!
(publicado originalmente no Blogueiras Feministas em 05 de fevereiro de 2013)
Comentários
Postar um comentário