A melhor HQ de 1980

É um "capítulo" de uma história do Zeferino, do Henfil. Está no Fradim 26, de junho de 1980, da editora Codecri, na página 47. Como a revista que eu tenho é preciosíssima para seu dono (e para mim, nunca vi coisa tão linda... chuif!) seria um crime escanear a história e soltar as frágeis páginas de papel jornal da frágil encadernação de cola. Então eu descrevo pra vocês, timtim por timtim, ipsis literis, tal e qual, em todos os minúsculos detalhes. Porque, também, estou com preguiça pra ver se já está na internet.

Vamos lá. São cinco quadros na vertical. O primeiro é a introdução, e tem o dobro da largura dos outros, a disposição sendo, portanto, um em cima, dois no meio e dois embaixo. Nas histórias do Zeferino, ou "Henfil do alto da caatinga", temos três personagens: o capitão Zeferino, vestindo o uniforme clássico de cangaceiro: chapéu de couro enfeitado e cinturão de munição; o bode Francisco Orelana, com um chapéu também, só que de conquistador espanhol. E a Graúna, que todo mundo conhece. Como assim você não? Que grande vergonha, hein? Mas vou dar uma chance ao iletrado leitor. Quando me empolgo perco a preguiça de pesquisar na internet e vocês estão com sorte hoje. Aqui e aqui temos uma amostra das personagens, críticas e henfílicas. Vai lá, mas volta rápido que eu to contando uma coisa importante, pô!

Poderíamos entitular a história a que me refiro de "A queda de ânimo do bode Orelana", mas não podemos. Dividir, separar, rotular a obra de Henrique de Sousa Filho? Crime! Enfim, vamos fazer isso, somente para "fins didáticos". Já há alguns quadrinhos estamos vendo o bode, uma caricatura de intelectual de esquerda, levar tombos, sem, no entanto, ter motivo para isso. Ele não tropeça nem é empurrado. Só tomba. Seus companheiros ficam preocupados e ele explica: "'É queda de ânimo".

Aqui talvez caiba uma referência que eu não posso lhes dar, mas posso imaginar, inferir, desconfiar. Obviamente, como nos dias de hoje, o Brasil passava por mais uma crise econômica, acompanhada de inflação, analfabetismo, educação precária, saúde periclitante, corrupção, enchentes, turismo sexual, novelas da Globo, Nelson Ned, enfim. Essas coisas que ainda envergonham a gente, e já causavam, em 1980, quedas de ânimo. Isso tudo piorado pela ditadura e pela censura. Mas o que estou tentando adivinhar é cousa diversa, é a inspiração do autor. Provavelmente nessa época, algum político, jornalista, economista, formador de opinião, whatever, deve ter usado a expressão várias vezes, e nosso querido Henfil (que Deus o tenha à Sua esquerda, desenhando, escrevendo e O fazendo rir, em Sua mais-que-perfeita fábrica do humor celestial, que só não é melhor que a nossa porque aqui estão Laerte, Fernando Gonzales e André Dahmer, amém). Enfim, nosso querido Henfil (de HENrique de Sousa FILho, notem bem; aí me dá vontade de voltar a assinar Shacal; quem sabe quando eu criar vergonha na cara e começar a fazer tirinhas também; já pensou? Já pensou? é, eu já) Então, o Henfil, teve um insight ao ouvir a expressão e a utilizou. Muitissíssimo bem, admitamos, já que eu elegi essa a melhor história em quadrinho do ano da graça de 1980. (ano da graça!!! sacou? sacou?)

Um pouco mais de contexto histórico agora, desta vez com mais fatos. Vejamos. 1980. Junho. Meus pais estavam preparando minha festa de um ano de idade. Eu era uma linda menininha ruiva cheia de cachos que já brincava com revistas em quadrinhos, livros e o que mais viesse na frente e fosse formado por papel, elementos de encadernação e tinta. Tenho fotos pra provar! E o Brasil estava iniciando sua abertura democrática, depois de 16 anos (só??? 1980-1964=16. só! puxa!) de Ditadura Militar. O Gal. Figueiredo, presidente desde 1979, já havia aprovado a Anistia e o pluripartidarismo. Nossos exilados políticos estavam começando a voltar pra o Brasil ou pensando em. Aliás, tem uma série ótima do Zeferino sobre a "volta". Aqui devo confessar meus conhecimentos históricos imprecisos e agradecer à Wikipedia e ao Rafael Dubeux, que fez essa cronologia da História do Brasil.

Continuemos, que internet sem figura é um saco. Texto comprido então... Espero que pelo menos os interessados em humor e em HQ estejam lendo, já que estou me esforçando para fazer um textinho massa. Então. O quadrinho. Do Henfil. Por falar nisso. Outra eleição arbitrária hoje. O Henfil do Ano 2000 é... é... é... (tambores por favor) ANDRÉÉÉÉ DÃÃÃÃHMER! O sado-masoquismo, a crítica, o sarcasmo, a ironia, o mau humor, até o traço! Vejam, vejam! Mas como eu não pensei nisso antes! Shame on you, Sharon Caleffi! Corroboramos nossa indicação ao prêmio com uma henfílica: "O humor que vale para mim é aquele que dá um soco no fígado de quem oprime" (Henfil, em "O Rebelde do Traço - a Vida de Henfil", Dênis de Moraes, José Olímpio Editora, Rio, 1997) E mais ainda, os Malvados são um tapa na cara do oprimido.


Mas. Hey, ho, lets go! Uma em cima, duas no meio, duas embaixo, lembram? Preto e branco. Na verdade, preto e sépia, ou marronzinho, ou cor de papel jornal antigo. E chegamos no primeiro quadro. Da Melhor HQ de 1980. Em um quadro vazio, ocupado apenas pelo número da tira, 568.B, no canto esquerdo, e pela Graúna e o Zeferino de perfil, em frente à metade de uma escrivaninha, no direito. A pessoa por trás da mesa está oculta. O Zeferino diz (a Graúna está com cara de preocupação):

- Então, Doutor, o Bode Orelana está tendo quedas de ânimo...

No quadro dois, o doutor-oculto-atrás-da-escrivaninha responde para um Zeferino atento e uma Graúna com cara de pena:

- Quedas de ânimo dão em pessoas portadoras de esperança

Quadro três, Zeferino:

- Tem alguma receita pra acabar com esperança? - e doutor:

- Sou pela cura da natureza...

(Graúna com cara de "aí tem truta, tô gostando não")

No quadro 4, Orelana atento ainda, o doutor continua:

- Mais 10 quedas de ânimo e a esperança acaba naturalmente.

(Graúna com cara de "charlatões, charlatões...")

No quadro 5, voltando do consultório, o Zé diz:

- Cumé que o safado do bode escondeu da gente! Tá com esperança...

Ao que a Graúna:

- Médico que não receita nada eu não gosto! Por mim dava um bom lumbrigueiro pra botar essa esperança pra fora...

* este post é dedicado a Luís Veras Filho, revisor do Diário do Povo, onde eu trabalhava, e dono orgulhoso da edição encadernada das revistas do Fradim 25 a 30.

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