Trechos de "A um passo", Rosa Amanda Strausz
Conto publicado em "25 mulheres que estão fazendo a nova literatura brasileira", antologia organizada por Luiz Ruffato para a Record. Resenha em breve.
É o conto que eu mais gostei e começa com essa mulher sem idade narrando:
"Sei que já há algumas horas que estou caminhando pela avenida Brasil e também sei que é este o nome desta estrada frenética. Sei que o prédio que acabo de avistar à esquerda abriga a Fundação Oswaldo Cruz (antigo Instituto Soroterápico Federal, criado em 25 de maio de 1900 para fabricar soros e vacinas contra a peste) e que, a despeito de sua aparência de castelo mourisco cenográfico, ali funciona um centro de pesquisas e ensino em saúde pública.Ela não sabe quem é, não sabe nada de si. Só está, de repente, na avenida, sentindo sede e fome:
Nada sei a meu respeito."
Tô gato? Tô representando o "ignorance is bliss" em um instantâneo de quietude singela? |
"Mas a fome incomoda. Talvez por causa dela, me vem à mente a imagem de um desenho de boi como todos os cortes da carne indicados por setas. Gosto da ideia de que cada parte do corpo do boi tenha um nome, embora ele próprio não saiba dizer o seu. Bobagem, ele também não sabe falar alcatra, chã de dentro ou filé mignon. Quem dá o nome ao corpo do boi é quem o retalha. Mesmo assim, gosto da ideia. Meu corpo também tem nome. Muitos nomes. Então, pego o pilot da bolsa e começo a pontilhar minha pele, seguindo o mapa dos músculos. Começo pelo rosto. Mal encosto a ponta da caneta na testa e uma moça entra no banheiro. Não presta atenção em mim, vai logo para uma das cabines. Também não ligo para ela. Começo a delimitar os espaços da testa e vou escrevendo: frontal, orbicular, superciliar. Prossigo pelo meio do rosto: piramidal, dilatador nasal. Desço mais um pouco, orbicular dos lábios, bucinador, elevador comum, grande e pequeno zigomático, risório, triangular dos lábios. Sigo pelo pescoço, desço pelos ombros, Quando chego nos seis, faço um círculo em torno de cada um e escrevo: Peito 1 e Peito 2. Antes que perca a idéia, faço a mesma coisa na bunda. Bunda 1 e Bunda 2. Depois, retorno para os braços e, lentamente, vou dando nome a cada músculo. Quando chego ao flexor curto do dedo mindinho do pé esquerdo, a tarde já vai pelo meio.
Agora sim, estou cheia de nomes. Ninguém pode dizer que não me conhece. Sou uma mulher transparente. Dobro o vestido azul com cuidado desnecessário - é de linho misto, não amassa - e guardo dentro da bolsa. A moça que tinha entrado no banheiro sai da cabine da privada, me vê pelada, toda marcada a pilot, e se assusta. Em vez de ir até a pia lavar as mãos, aperta o passo em direção à porta. Esta com medo de mim. Gosto disso."Até aqui é bem óbvia a referência ao filme Memento: sem memória e escrevendo no corpo... mas quem disse que originalidade é tão importante assim? Importante é contar uma boa história e fazer bonito. A personagem é uma das mulheres mais desamedrontadas que eu já li. Muito bom.
A Rosa escreveu poucos livros para adultos. Mas se seguirem o estilo, devem valer a pena. O último, "Teresa, a santa apaixonada", tem páginas para visualização no google books. Bora ver.
"25 mulheres" custa a partir de R$ 29,00 novo e por R$ 20,00 nos sebos. O Luiz também organizou o "+ 30 mulheres" cujos preços são praticamente os mesmos.
E nessa hora vinha o Big Red e me perguntava: "por que eu devo ler?" Ele não aceitava um "pra se divertir" como resposta... mesmo depois do vídeo linkado aí. Pois muito bem. Porque são contos inéditos e são na grande maioria bons. Pras meninas eu diria que é legal se espelhar em quem é parecido com você. É a regra de três da Juliana Cunha, do "Já matei por menos". Se você gosta de literatura, deveria ter pelo menos três autoras favoritas, mulheres (no meu caso), com pensamentos parecidos com os seus.
Eu estou à procura. A Rosa talvez seja uma, quem sabe?
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Mais:
- Meu jantar dos sonhos (também) tem escritoras
- Minhas personagens femininas preferidas
- Homenagem à Lygia Bojunga no meu ex-libris
Resenhas de textos de autoria feminina:
- A mulher do viajante no tempo, Audrey Niffenegger
- O rapto das cebolinhas, Maria Clara Machado
- Noite e Dia, Virginia Woolf;
- Água para elefantes, Sara Gruen;
Pronto... Mais um livro pra minha wishlist interminável! rsrsrs Adorei o trecho, seus comentários e gostei dessa ideia da Juliana de ter 3 autoras favoritas. Vou pensar sobre o assunto! rs bjos
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